VIVEMOS UMA ÉPOCA DE CRISES. Sim, crises. Não uma, nem duas, mas muitas crises. Não apenas econômica, ou social, ou familiar. Não apenas uma crise cultural e ideológica. Configura-se uma crise sistêmica, e como toda crise, as fronteiras definidoras que mantêm várias identidades, sejam elas de grupos ou pessoas, perdem a força de seus contornos deixando muitos em busca de novas formas de identificação. Num momento como este qualquer caminho é um caminho “válido”. Numa crise que afeta tão profundamente nossas identidades, refletir sobre ela é necessário.

Como elemento definidor de identidade vou usar um poeta, Fernando Pessoa, que sobre si mesmo disse: “eu sou algo entre aquilo que quis ser e o que fizeram de mim”. Parece claro então que, grosso modo, temos duas forças atuando em nossa formação: as pressões internas e externas. Quando a balança entre ambas encontra-se razoavelmente equilibrada e essas pressões, tanto dentro quanto fora do ser humano, são positivas, tudo vai bem. Mas não é o que acontece hoje.

Primeiro vemos que a balança tem tendenciado a dar uma maior influência aos fatores externos, o que já gera um desequilíbrio. Vemos também que esses fatores externos nem sempre são salutares, para não dizer quase sempre. Na busca incessante por novas fontes de identificação pessoal, os seres humanos dos nossos dias, têm encontrado inúmeras possibilidades ilusórias, que adiam, cotidianamente, o encontro com o verdadeiro eu. Crianças, jovens, adultos e velhos encontram-se em busca da eternidade do efêmero, numa tentativa desenfreada de manter o corpo nos padrões alucinantes das celebridades de todas as ordens. Vivemos numa época de hedonismo sem fronteiras, uma fruição extravagante da estética que a todos esmaga.

O corpo é o lugar sobre o qual se inscrevem nossas expressões emocionais. Lugar da construção dos limites, sendo também o lugar da manifestação de nossos medos, sonhos, desejos. Grande parte dos seres humanos dedica tempo e dinheiro em atividades físicas e estéticas, na tentativa de inscrever no corpo sua marca pessoal, seu cartão de visita para impressionar os demais, sem se darem conta da necessidade de consolidação dos recursos emocionais e do aperfeiçoamento pessoal que demanda tempo, disciplina e paciência. Ao mesmo tempo buscam atrair, através de um sensualismo vazio, parceiros e parceiras para esse (des)encontro.

Nada mais justo de que manter o corpo são, desde que a mente também esteja sã, embora não tenhamos observado que isso tenha acontecido. Para manter esse corpo, não diria são, mas nos “padrões”, temos pagado um alto preço, e essa busca gera uma frustração constante, pois sempre existirá uma infinidade de pessoas mais belas e atraentes do que nós.

E os poucos que se encontram nesses padrões são escravizados por ele, uma vez que sempre estão se comparando, em todos os lugares e situações com os demais, na tentativa louca de perceber-se: “espelho, espelho meu, existe alguém nessa balada mais bonito(a) do que eu?”, e quando tem, a insegurança toma conta; os “deserdados” da beleza sentem-se inferiorizados, menosprezando a si mesmos e buscando alternativas também ilusórias de compensação, tornando-se os palhaços da turma, os que pagam tudo, os oferecidos, os disponíveis, etc.

Cada qual com sua moeda de troca nas relações pueris. Todos sofrem, todos são vítimas de todos, mas poucos têm coragem de dar um basta e gritar: — isso é uma loucura… De fato esses valores são a expressão da loucura, da insensatez que paralisa e destrói vidas humanas, pois muitos jovens desenvolvem distúrbios como a anorexia e a bulimia, depressões e desencantos. Uma multidão de homens e mulheres perdendo um tempo precioso, despreparados para o envelhecimento do corpo, por não amadurecerem o espírito.

E por não terem construído recursos emocionais e morais, se encontrarão na velhice com o desespero, a decepção e a solidão. O Apóstolo Paulo asseverava: “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (I Coríntios 6:12). Certamente muitos são os caminhos, nem todos salutares. Em nós temos sempre a liberdade de escolher entre eles. A busca exclusiva de felicidade corporal nos leva a um estado anômalo. 

A identidade humana é múltipla e singular, de forma que tentar restringi-la a uma única faceta (corporal) empobrece nossa relação conosco mesmo, uma vez que passamos a confundir e descolar nossa identidade para nossa imagem. Nossa imagem perece, desgasta-se, envelhece, nossa identidade se aprimora, se consolida, amadurece, se o quisermos. Até mesmo para suportar os naturais limites do envelhecer precisamos amadurecer, desenvolver novas perspectivas, novos horizontes e novos recursos emocionais, até porque, ao final, a fotografia desbota, a face enruga, os contornos antes sedutores declinam, mas a alma se expande, se ilumina se tivermos um compromisso não apenas com o nosso corpo, mas especialmente com o nosso ser.